domingo, 24 de fevereiro de 2008

Sobre a disposição cultural para a barbárie.

Não creio que seja melhor retroceder.
Os caminhos que nossa sociedade ruma são muito questionados nos dias atuais. No século XVIII, os iluministas ditavam que o fim último do desenvolvimento cultural seria o controle da natureza em nome da emancipação humana; tal feito secularizaria as ciências e faria do homem senhor absoluto entre as potestades naturais. O decrépito século XX e o impúbere século XXI questionam a eficácia do projeto iluminista, eventos que poderíamos chamar de conseqüências irreversíveis que duas guerras mundiais sugerem em um mundo globalizado.
Qual a razão em questionar o desenvolvimento tecnológico? Acredito que seja porque ele cria uma nova forma de limitação para o ser humano que já não é mais as intempéries naturais. Quem domina melhor a natureza ganha o direito de dominação, que outrora era dessa natureza que agora está sob controle, em relação ao outro que estaria de qualquer forma limitado, quer pela natureza quer pelo dominador da natureza e agora dele também. Talvez seja essa a motivação de Hobbes para o “Homo homini lupus”. Enfim, o aumento de capacidade de ação do homem para com os revezes naturais, em vez de eliminar um imperativo restritivo, apenas acresceu mais um.
Longe de esgotar as razões que incentivaram o homem a duvidar do progresso tecnológico, penso que esse esboço de justificativa orienta suficientemente o propósito textual. Um amigo enviou-me, recentemente, algumas das reflexões do anarco-primitivista John Zerzan. Tive contato com algumas de suas considerações sobre a civilização, elas apontam a formação da cultura simbólica, da linguagem, das artes e do número como mediações que nos distanciam da realidade como ela é. Em vez de emanciparem o ser humano, como queriam os iluministas com seus direitos inalienáveis, elas propiciam a gênese de uma cultura tecnológica que culminaria, necessariamente, nas barbáries que o século XX apenas começou a protagonizar.
Em sua obra “Futuro Primitivo” de 1994, uma das possibilidades a serem pensadas como alternativa para inverter essa lógica que o advento da cultura simbólica pressupõe, indica para o que chama de retorno aos ideais das comunidades primitivas. Tal definição retoma alguns dos valores que a humanidade viveu nas primeiras sociedades, como as divisões de alimentos e a sexual do trabalho. O fato dos homens caçarem e das mulheres coletarem os alimentos vegetais, não dava uma supremacia masculina em relação ao trabalho, como nas sociedades modernas, pois a mulher não dependia do homem para sobreviver, seu sustento já estava garantido com o trabalho que realizava. Uma sociedade que retome esses valores das comunidades antigas é o que defende Zerzan como uma possibilidade de reação ao distanciamento do ser humano para com a natureza.

Dessas opiniões tenho que destacar alguns aspectos importantes:
1- A idéia de que o que é novo não é necessariamente melhor;
2- Enxergar a cultura simbólica (ocidental) como instrumento de dominação do homem pelo homem;
3- Atribuir importância da divisão sexual do trabalho como fator desagregador.

Ver a sociedade como fruto de uma idéia que visa o lucro, mesmo que seja por cima de valores humanos, sintetiza a tríade acima mencionada. Entender e tentar sistematizar uma ação com esses referenciais epistemológicos, já é um grande empreendimento que poucos tem a audácia de ousar. Contudo, acredito que existem algumas problemáticas que essa posição suscita. O que determina o primitivismo? O ideal primitivista ou o abandono estrutural do desenvolvimento tecnológico? Abandono as técnicas da medicina que fazem com que meu pai melhore cada dia mais de sua enfermidade em nome de uma “era de ouro” primitivista? Se a cultura é um instrumento que aliena o homem, ela não pode ser usada de forma “invertida”, ou seja, para “humanizá-lo” com a mudança de uso de tal instrumento? Essas questões e outras de mesmo caráter são de vital importância para o desenvolvimento dessa singular teoria de John Zerzan.
Para fins concludentes, vou me apegar ao velho sábio grego Aristóteles. Em Ética a Nicômacos 4º edição Brasília UNB 2001 página 42, o filósofo coloca as estratégias para a busca da virtude nas ações:

“Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo.”

Nessa visão aristotélica, pode-se afirmar a importância de se buscar o que chama de excelência moral. Existe o excesso, a falta e o meio termo e a excelência moral se situa no meio termo, ou seja, o ponto eqüidistante entre dois vícios: um por falta outro por excesso. Enquanto a supervalorização dos meios de mediação entre homem e natureza caracteriza um vício por excesso, a visão que Zerzan opõe à cultura instrumental e tecnocrata, mostra ser um vício por falta, contudo, um vício. Com esse panorama é notório um ambiente propício à discussão sobre os destinos e posições a serem discutidos e adotados por nós, a sociedade contemporânea.